quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Efeitos secundários

Durante a IBE deste ano, presenciei directamente, o que eu acho que são os efeitos secundários da globalização do break. Toda a gente já sabe o que o youtube tem feito pelos eventos e por bboys nos últimos anos: promoção e mediatização, que obviamente tem aspectos positivos e negativos.

Durante todo o evento apercebi-me de algo que só ficou 100% claro na altura do ALL battles ALL. O público, que neste caso era composto essencialmente por bboys, reage cada vez menos de tão habituados que estão a ver os moves de cada bboy, seja por terem visto em video ou em directo (também é verdade que as pessoas viajam mais para estarem presentes nos eventos). Este "fenómeno" pode ser visto como algo positivo e também negativo: por um lado pode levar a que o desinteresse e a monotonia se instalem neste tipo de eventos em que o espectáculo é a "atracção" principal, e por outro, pode forçar os bboys a irem cada vez mais longe nas suas capacidades motivados pela sede dos aplausos e gritos que estão a esmorecer. Pode também levar a que se crie um fosso ainda maior entre o lado mainstream e o lado underground, criando assim uma distinção ainda maior entre aqueles que procuram a partilha directa de conhecimentos em eventos mais pequenos e aqueles que preferem a adrenalina de um grande público a vibrar com a execução de moves cada vez mais aparatosos.

Outro dos efeitos foi mais evidente para mim na battle de TopRock. Com concursos específicos para diferentes partes da dança que é o break (toprock, footwork, powermoves) é como se estivessem a ser criadas outras danças. Existem cada vez mais pessoas a fazer "toprock" que nunca na vida fizeram break, nem nunca irão fazer. Desvirtualizam o toprock, deslocam-no do seu meio e usam-no como uma party dance. É óbvio que isto pode ser discutido tendo em conta que o break vem provavelmente das party dances dos anos 70 em que se dançava apenas de pé, mas não estaremos então a falar de duas coisas diferentes: Party dances (composto por várias danças) e toprock? Ou é o toprock uma das party dances? Ou ainda, será que o toprock deve ser maleável consoante a situação passando de funky e "descontraído" durante uma festa para agressivo e cru numa battle?

O terceiro efeito da "globalização" do break está relacionado com o poder da palavra e a sua difusão. Com todos os meios de comunicação e partilha de hoje em dia a palavra de cada um viaja muito mais rapidamente e atinge um maior número de pessoas. Com isto, o impacto da opinião de certas "personalidades" é muito mais forte do que antes, o que leva a que cada vez mais gente siga as teorias e ideais de uma só pessoa levando a que as pessoas se pareçam cada vez mais até na maneira de pensar, o que é mais grave ainda do que ter a mesma maneira de agir, dançar, vestir, etc.

Isto são observações pessoais e como eu disse, tem sempre um lado positivo e um lado negativo...cada um tira as conclusões que achar melhor.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Obstáculos

Há dias em que não apetece ir treinar. Ou porque está a chover, ou porque é muito longe, ou porque se quer ir ao cinema, ou porque vão poucos ou nenhuns bboys ao treino e tens de treinar sozinho, ou porque é preciso apanhar dois autocarros para lá chegar, ou porque estás cansado, ou por um dos muitos motivos possíveis.

Eu sempre disse que a dificuldade em ser bboy é essa e não os treinos em si, porque nos treinos é suposto termos prazer, mas o percurso para chegar ao treino ou outros pequenos obstáculos podem-nos sugar toda a motivação que fomos acumulando durante o dia.

Normalmente não nos apercebemos da sorte que temos em podermos ser diferentes por algumas horas, por podermos criar, representar, moldar o nosso corpo, ultrapassar limites, descobrir possibilidades, partilhar, definir objectivos e ter o prazer de alcança-los, sentir a evolução, surpreender alguém, ser livre ou experimentar mil e uma sensações diferentes dependendo do movimento que estás a praticar.

É porque nos esquecemos disso tudo que às vezes não apetece ir treinar, mas agora que não o posso fazer, por ter partido a mão, sinto ainda mais a insignificância desses pequenos obstáculos comparados aos prazeres que tiro desta dança.





Ser bboy exige tanto do corpo como da mente, e é quando as coisas estão mais difíceis que se separa o trigo do joio, é quando o meu corpo não pode ser o de um bboy, que o meu cérebro treina no seu lugar, é nestas alturas que mais ideias tenho, mais vontade, é agora que preparo o meu regresso, desenho e aponto novos 'moves', que faço um exame de consciência e me faço novas promessas, é agora que me preparo para corrigir os meus defeitos,é agora que me sinto mais nervoso, é agora que luto mais, é também o momento em que me sinto mais isolado, e no entanto o momento em que sei que sou um bboy.

Aproveitem para se empenharem a fundo, não desperdicem oportunidades e nunca se queixem de serem bboys.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Travelling

Depois da Eurobattle, entre amigos, surgiu várias vezes a questão de porque é que os bboys Portugueses não tem mais nivel e parece que estão sempre um passo atrás em relação a outros países às vezes com uma história mais curta em termos de tradição em relação à cultura hiphop.

No resto do país não tenho a certeza, mas no Norte o break foi provavelmente a primeira vertente da cultura a ter alguns adeptos. Então porque estamos sempre atrás?

No início podiamos-nos queixar da falta de informação, nos tempos em que tentavamos desesperadamente obter cassetes de video de break e nos contentávamos com fotos de freezes sacadas do site www.spartanic.ch (um dos primeiros se não o primeiro site de break) nos primórdios da internet.

Uma das razões pode ser devido ao facto de sermos um país tão periférico e com pouco poder de compra. É fundamental para o nosso desenvolvimento como bboys e mesmo como pessoas viajar. Viajar dentro de Portugal já não é mau, mas sendo a nossa cena tão pequena acaba por não dar muito resultado, ao fim de algum tempo conhecemos toda a gente e difícilmente vamos ter uma epifania. De todos os bboys portugueses muito poucos viajaram para além fronteiras, menos ainda foram até espanha, muito poucos passaram para além de espanha e quase nenhuns o fazem de uma maneira regular.

Viajar pela europa não é muito dificil, nem muito caro. Comecem por uma viagem pequena, organizem-na com antecedência e vão ver que sai mais barato do que pensam e vai ajudar infinitamente na vossa dança.

Com o tempo vão fazer amigos no estrangeiro e rapidamente arranjam sítio onde dormir sem ter de pagar hotel.

Existe potencial em Portugal, sempre existiu não só no break como em todas as actividades. No estrangeiro somos vistos como um povo trabalhador que se esforça a 100%, mas quando em Portugal falta-nos essa mentalidade, esse espírito, essa vontade.

Por favor, VIAGEM.

P.S.1: Quando digo viajar é de preferencia para participar num concurso.
P.S.2: Se precisarem de dicas e de algum tipo de ajuda estejam à vontade para me contactar.

quarta-feira, 23 de março de 2011

"Um pouco de mim"

Para quem ainda nao sabe o Mundo dos Dealema voltou a lançar uma mixtape e como sempre nao desilude.

Cada musica que ouço dele ou dos Dealema leva-me de volta aos tempos do Liceu em que passavamos sempre por casa/estudio dele, o 2o Piso, para ouvir as suas mais recentes produçoes. Esses momentos sempre me fizeram arrepiar com cada sample, com cada batida que fazia vibrar o pequeno quarto e que abafava tudo à nossa volta. Sinto que viajava para outro mundo e fazia-me sentir 100% parte da nossa cultura, parte de algo especial.

Quase 15 anos depois o Mundo explica nesta letra como fazemos parte uns dos outros e apesar de nao o saber expressar com a musica e duma maneira tao explicita com as palavras, sem duvida que o expresso através da minha dança. Parte da maneira como me mexo, a minha visao da dança, a minha energia tem um pouco dos Dealema e em particular do Mundo e desses momentos proporcionados à volta do MPC e, que muitas vezes quando me falta motivaçao ou inspiraçao, volto a esse lugar.

Eu sou um pouco de ti e tu és um pouco de mim. Obrigado Mundo.



P.s: A mixtape é gratuita e pode ser descarregada no Myspace do Mundo Segundo.
P.S.1: Desculpem a falta de acentos...estou a usar um teclado diferente.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Super Cola 3

Às vezes não nos damos conta de como o tempo passa. Mais difícil é de o perceber quando estamos sempre no mesmo sítio, rodeado pelas mesmas pessoas e mesmo assim quando voltamos a um sítio onde estivemos em tempos, a maior parte das vezes também não mudou.

Este fim de semana estive em Barcelona, cidade onde vivi há cerca de cinco anos atrás. Já tinha voltado lá várias vezes depois, mas esta foi a primeira em que fui à sala onde treinei durante um ano, 2 ou 3 vezes por semana.

Fui lá de férias com a minha namorada, mas como bom bboy que sou (entenda-se como bom menino e não como um auto elogio), fui atraído pelo evento de sábado no qual acabei por participar a convite dos meu irmão Valen e o resto da crew Lunaticks. Era um concurso crew vs crew, no qual os perdedores deveriam entregar a t-shirt com o nome da grupo que vestiam, aos vencedores (conceito em tudo semelhante ao Battle For Colors se não me engano organizado pela Asia1 e que pretende recuperar aquilo pelo qual se batalhava antigamente: o amor à camisola, literalmente).

Até aqui tudo normal, tudo parecia na mesma, nada tinha mudado em cinco anos.

Voltei lá na 2a feira para treinar, e para lá chegar voltei apanhar o mesmo metro, a sair na mesma estação e percorrer o mesmo percurso a pé que foi minha rotina em tempos. Sempre tudo muito familiar e com um cheiro a nostalgia.

Só já no fim do treino quando comecei a conversar com o Valen e a perguntar por certas pessoas é que me dei conta de como as coisas mudam à nossa volta. Talvez não para muitos como eu que têm a sorte de ainda manter o mesmo estilo de vida, a mesma relação com o break (apesar de já ter mudado de casa várias vezes e até de país), mas não nos damos conta das pessoas que vêm e vão e mudam as suas vidas deixando-nos a nós neste ritmo, neste transe, nesta rotina de treinos, de battles, que se tornaram para mim uma das coisas mais regulares na minha vida.

Sorte diriam uns, infortúnio diriam outros, mas esta linha estabilizadora que tem sido o break é talvez a cola que mantém todas as coisas que fiz e faço na vida ligadas umas às outras. Quando não sei o que fazer, sei sempre que posso ir treinar, e comparo isso à fé dos religiosos, que vão à igreja, à sinagoga ou à mesquita...sou ateu no que toca às religiões comuns, mas sou devoto no que toca ao break...Amén.

P.S.: só para vos dizer que voltei com a minha t-shirt para casa. Muito respeito para os Lunaticks.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Eventos no estrangeiro

As primeiras viagens que fazemos para um evento no estrangeiro são sempre difíceis de planear. Primeiro há sempre a duvida se vale a pena ir ou não, porque dependendo das posses de cada um pode ser um grande investimento. Depois há a qualidade do evento em si que pode variar de ano para ano.Há também a questão das deslocações, nomeadamente do aeroporto (se forem de avião) para o hotel, do hotel para o evento, do evento para a afterparty ou para os workshops.

Se tivesse de aconselhar um evento para alguém ir pela primeira vez, a hipopsession seriam um deles.
Primeiro porque das 3 vezes que fui sempre foram apresentados grupos e bboys de grande nível, com bons júris e claro está boas battles. Apesar de não ser um evento especialmente gratificante para quem vai participar e não é convidado (de 43 crews só passavam 3 para as finais), existe no geral um bom ambiente, com algumas cyphers (não é propriamente um evento de cyphers), com um publico em geral (na maioria "civis"), que reage bem aos bboys e aos speakers, uma excelente organização, grandes djs e um local quase perfeito tanto para dançar como para ver.

Algo também importante para quem não conhece o evento ou a cidade, é o facto de que a partir do aeroporto existe um autocarro que te deixa à porta do evento, e que tanto os hotéis, como a before party, a after party, os workshops, etc quando não são no mesmo sitio, estão à distancia duma caminhada de 5 minutos.

Outro lado bastante positivo e que tenho a certeza que qualquer um aprecia é o facto de poderes conviver com praticamente todos os bboys, sejam eles superstars ou não, seja durante a competição, a before e after party ou mesmo no hotel. É evidente que muito depende da capacidade pessoal de cada um de se relacionar socialmente, mas as condições estão reunidas para que te insiras aos poucos numa comunidade internacional e que fazendo amigos ou "inimigos", contactos, experiência e à vontade, as viagens para eventos no estrangeiro se tornam cada vez mais fáceis.

Isto tudo é obviamente a minha opinião pessoal baseada na minha experiência, e claro, não é uma verdade universal, também pelo facto de existirem diferentes tipos de evento e cada bboy poder estar à procura de sensações que só se encontram em determinados ambientes. Este não é o melhor evento a que já fui, mas para além de estar entre os melhores é como vos digo, de fácil acesso para quem não está habituado.

Se alguém precisar de alguma info mais pessoal sobre algum evento, podem sempre me contactar. Não fui a todos os eventos que existem, mas na Europa já fui a muitos e claro, posso sempre contactar alguém que conheça o evento de forma a vos poder ajudar.

Aqui fica a final do 3vs3 para quem ainda não viu:

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

"Fazer festinhas no ego"

Tenho uma amiga que diz que gosta que lhe façam festinhas no ego, mesmo sabendo que algumas são forçadas ou falsas.

No fundo é para isso que serve o facebook. Não me entendam mal, porque também eu uso e abuso do site. Pomos um vídeo e la vem alguém dizer que gosta, uma foto nossa só para que alguém faça um comentário, seja ele qual for...é só para nos sentirmos parte do mundo, para que os outros saibam que estamos aqui. Para nos sentirmos parte de algo maior do que nós. Isso na verdade não me incomoda, mas há duas cenas que me deixam a bater mal.

Uma é quando as pessoas em geral escrevem no status o que estão a fazer (coisas sem interesse nenhum): "a tomar banho", "a ver tv", "vou sair", "vou treinar", "comi rojões", etc.

E sendo eu um bboy há outra coisa que me enerva ainda mais...é quando os bboys põem a agenda dos próximos 3 meses. Eu entendo, festinhas no ego é bom, e dà uma sensação de estrela de break, que viaja muito, vai a muitos eventos, é muito conhecido, mas a ideia de auto promoção sempre me custou a engolir, é algo pessoal e ninguém tem de concordar comigo, mas quando dominas as tuas acções tem mais impacto do que as tuas palavras e não precisas de dizer aos outros o que fazes, fizeste ou vais fazer. Eu quero ser reconhecido pelo valor que tenho (mesmo que não seja enorme) e não pelo valor que digo que tenho.

Não sendo eu extremista, consigo perceber o alcance da publicidade no facebook, mas é uma área que não me interessa e festinhas no ego não me fazem falta no break...o que me falta, a mim e a muita gente são criticas, sejam elas boas ou más.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

domingo, 16 de janeiro de 2011

Bboy Marlon (Havikoro) Interview - bboymagazine.com

Os ultimos dois posts que fiz fazem-me sentir exactamente o mesmo que este, e o que tem em comum é a verdade que deles sobressai. O título que o Alien Ness utilizou no blog dele (www.alienness.blogspot.com) para descrever o video não podia ser melhor: "THE TRUTH, THE WHOLE TRUTH, AND NOTHING BUT THE TRUTH AS TOLD BY MARLON" .

O Marlon e os Havikoro sempre foram uma das minhas grandes inspirações...desde o tempo do VHS, e identifico-me a 100% com o que ele diz, só gostava de o saber dizer como ele, mas como não sei, deixo-vos com as suas palavras.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

" I got to respect their fucking bricks?"

Mais uma vez sinto que basta termos paixão no que fazemos para sermos ouvidos e termos "sucesso"...entre aspas porque o sucesso é relativo. Sucesso como inspirar alguém um move que tem a tua identidade, ou fazer alucinar alguém que passa em frente a um graff, entre outros sucessos dentro da nossa cultura são os que a mim me dão energia todos os dias.




Fonte: http://oldschoolscholar.com

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Breakumentary: Angles ▲ Episode 1 ( morethanastance.com )

Quando fazes algo com o coraçao ve-se que é verdadeiro (seja dançar, cantar, pintar ou falar como é o caso), é impossivel fingir e é impossivel nao ter um grande impacto nos outros.



fonte: wwww.morethanastance.com

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

ELES ESTÃO DOIDOS de António Barreto

ELES ESTÃO DOIDOS


A MEIA DÚZIA DE LAVRADORES que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da chegada da "fast food", para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros que faziam a domicílio pratos e "petiscos", a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes, podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados.

A SOLUÇÃO FINAL vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar.

EM FRENTE À FACULDADE onde dou aulas, há dois ou três cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!
Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata que não sejam industriais e embalados? Proibido.
Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos, compotas, pão e enchidos.
Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido. Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.
Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.

Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas.
Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido.
Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de fiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido.
Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só industriais.
É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos.
Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.

AS REGRAS, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as descrever.
Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.
Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.
Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.
No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta "produto não válido", mesmo que esteja vazia.

Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação.
Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda.
Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.
Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico, papel ou tecido.
Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica.

As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia e devidamente registadas.
As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário certificado.
Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.
Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte.
O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.

TUDO ISTO, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro.


«Retrato da Semana» - «Público» de 25 de Novembro de 2007